oi… tem alguém aí?
você pode ter uma coleção de filtros para usar nos stories do Instagram, não deixar escapar nenhuma foto sequer sem uma alteração que seja no rosto, mas em algum momento da sua vida, terá que lidar com a sua imagem tal como ela é. foi o que aconteceu comigo em uma tarde de terça-feira.
eu precisava atualizar meus dados biométricos no sistema nacional que nos coloca numa espécie de catálogo de cidadãos. fui tranquila ao Poupatempo, com a mesma roupa com que estava trabalhando em casa, alguma calça de malha e um casaco de moletom. coloquei uma jaqueta jeans por cima de tudo porque o outono em São Paulo está a verdadeira anunciação do inverno. e foi a minha salvação. pelo menos a jaqueta - com pins de lapela em formato de folhagens - me garantiu algum charme.
hoje em dia é tudo muito tecnológico e você não precisa nem mesmo manchar seus dedinhos com tinta para deixar suas digitais. você aperta cada um deles em um apetrecho acoplado ao computador e, pronto: uma das únicas coisas que te faz realmente diferente das outras pessoas está lá no tal sistema. tudo corria bem, até que, após colocar a última digital, a atendente me avisa: agora é a foto.
foto? hum, acho que não. eu agendei a atualização biométrica (mulher, você não tá vendo essas olheiras na minha cara?). acho que não preciso atualizar a foto (mulher, olhe para esse cabelo ensebado!). acho que essa parte pode ficar para outro dia (mulher, tenha misericórdia de mim!).
como sempre, o sistema venceu. me posicionei no fundo branco, com as costas retas, de frente para câmera, ajeitei a jaqueta, dei um meio sorriso - daqueles que a gente solta quando não sabe bem se a situação pede um sorriso ou um semblante sério. e… flash!
olhei para a tela do computador e lá estava eu: cabelo todo preso em um coque no alto cabeça de forma displicente (não o desarrumado chique proposital das mulheres que vemos no Pinterest, era um ninho de passarinho torto com mil fios soltos em volta), as olheiras de quem tem uma filha de três anos que ainda acorda duas vezes por noite saltando dos meus olhos (uma injustiça não poder ficar com os óculos), a cara de quem foi pega de surpresa.
a atendente me perguntou se estava boa, se poderíamos usar aquela foto. eu cogitei perguntar se não tinha algum filtro que pudesse ser colocado ali, que me desse algum frescor. um filtro com nome “summer breeze” ou “golden hour”. me segurei, sorri e falei que estava ótima.
é com essa foto que serei reconhecida ao me pedirem meus documentos. e, o que naquele dia achei uma injustiça, hoje vejo que faz todo sentido. aquela sou eu. hoje não estou muito diferente daquela terça-feira, apesar do cabelo estar solto. a pele artificialmente sem poros, as olheiras que somem em um passe de mágica, o cabelo sem um frizz? nada disso sou eu. os documentos pessoais e a burocracia cotidiana continuam sendo um espaço livre dos filtros. pelo menos enquanto nosso RG e CPF não for o dos nossos avatares no metaverso.
até a próxima,
Carol
Kafka amaria sua crônica - eu adorei!