oi... tem alguém aí?
ontem, no piquenique da escola da minha filha, o pai de um amigo dela veio, gentilmente, cobrar a ausência de textos aqui neste espaço. me senti lisonjeada. será que agora posso, enfim, me considerar uma escritora? tenho leitores - me permito a licença poética de supervalorizar um leitor colocando-o no plural - que sente falta dos meus textos.
minha resposta foi culpar o trabalho - quem não culpa? e não é uma mentira completa: passo o dia escrevendo. no período de descanso me sobra pouca vontade de escrever mais. e o cotidiano, sabemos, é capaz de engolir cada faísca de inspiração. Fayga Ostrower, no livro Criatividade e processos de criação, não se aprofunda, mas encosta de leve na questão:
“o homem [e mulher] contemporâneo, colocado diante das múltiplas funções que deve exercer, pressionado por múltiplas exigências, bombardeado por um fluxo ininterrupto de informações contraditórias, em aceleração crescente que quase ultrapassa o ritmo orgânico de sua vida, em vez de se integrar como ser individual e ser social, sofre um processo de desintegração. aliena-se de si, de seu trabalho, de suas possibilidades de criar e de realizar em sua vida conteúdos mais humanos.”
(sabe quem também falou sobre a alienação do ser humano, né? o velho barbudo, Karl. não vou me alongar agora, mas tá aí um assunto bom para entender melhor)
neste ponto, é preciso fazer uma ressalva: eu tenho escrito sim, muito, todos os dias. e, sem modéstia alguma, tenho escrito bem. nos últimos tempos escrevi materiais pedagógicos para professores, textos sobre os desafios do ensino de matemática, material de apoio para curso sobre projetos culturais. tudo isso foi feito sob encomenda de terceiros e fui remunerada pela entrega. mas foram também exercícios de escrita criativa.
porque, no fim, toda escrita é criativa. todo texto, mesmo sendo técnico, acadêmico, didático ou publicitário, envolve um processo criativo, não surge do nada - a não ser que seja fruto de uma pergunta ao Chat GPT, mas, ainda assim daria uma boa discussão pensar na criatividade (ou falta dela) envolvida nisso.
também sigo, esporadicamente, escrevendo nos cadernos que deixo espalhados pela casa. sensações, sentimentos, cenas do cotidiano - inventadas ou não. as páginas estão sendo preenchidas, de uma forma ou de outra, com textos feitos para não serem compartilhados.
todo esse processo de acúmulo de informações e excesso de texto escrito me levou, inclusive, a aproveitar minhas mini férias em abril para fazer um curso online de “patterns botânicos para sketchbook”. durante alguns dias, preenchi páginas de um caderno com cores, plantas, flores e formas abstratas.
senti como se tivesse levado minha criatividade para passear.
além disso, estou me sentindo inundada do que tenho visto e lido nos últimos tempos. sei de gente que se sente bastante inspirada depois de ler um livro bem escrito ou assistir a um filme ou série com roteiro incrível. eu, não. pelo menos, não é o que tem acontecido.
para minha sorte, tenho entrado em contato, consumido e apreciado obras que me deixam de boca aberta, admirada pelo talento (e esforço e técnica e tempo) de quem as criou. para meu azar, isso tem, de alguma forma, travado a minha escrita, digamos, mais livre.
sou uma das milhares (milhões?) de pessoas embasbacadas com a brilhante última temporada da série Succession. cada episódio uma aula de roteiro, diálogos e construção de personagens. e, claro, a tendência do momento: odiar bilionário, gostoso demais. obcecada que sou, ainda assisto às análises cheias de referências.
terminei por esses dias a terceira temporada de Atlanta e sigo chocada com a genialidade (e beleza) de Donald Glover. o tipo de série que começa boa e só vai melhorando, até chegar à essa temporada que eleva o humor ácido e às críticas sociais ao limite. provando que dá pra substituir piada racista por piada sobre racismo, os episódios expõem e ridicularizam a branquitude de forma brilhante.
li o livro Garota, mulheres, outras, da autora britânica Bernardine Evaristo, encantada com cada uma das muitas personagens que ela apresenta. em sua maioria, mulheres negras, com diferentes trajetórias de vida, mas todas, de alguma forma, se entrelaçando em temáticas bastante contemporâneas, como racismo, imigração e transexualidade.
tenho, assim, me sentido inundada pelo que leio e assisto. e isso é bom. todo esse caldo criativo e imagético parece estar borbulhando dentro de mim, como num caldeirão de uma bruxa.
Fayga Ostrower, no livro já citado, apresenta como as associações de tudo o que vivemos, vemos, experienciamos, é parte essencial do processo de criação:
“provindo de áreas inconscientes do nosso ser, ou talvez pré-conscientes, as associações compõem a essência do nosso mundo imaginativo. são correspondências, conjecturas evocadas à base de semelhanças, ressonâncias íntimas em cada um de nós com experiências anteriores e com todo um sentimento de vida.”
qualquer dia desses coloco a criatividade sentadinha ao meu lado e mostro pra ela um conto meu inacabado, chamado Berlin, e ela vai tirar do meu inconsciente algum diálogo dos irmãos Roy, que será mastigado e reelaborado na boca do casal de namorados que se perde na capital da Alemanha. e eu nem vou perceber o que vai ter acontecido.
até a próxima,
Carol
Só para deixar registrado que eu também estava com saudades dos seus textos ❤️
adoro quando chega texto teu <3 sobre análises de succession, já visse essa? https://www.youtube.com/watch?v=TXgAedDuUE4