oi… tem alguém aí?
quando a minha avó materna faleceu, ela deixou um bilhete escrito à mão dizendo que queria ser cremada e que o dinheiro da venda do apartamento fosse dividido entre a minha mãe, minha irmã e eu. até onde meu escasso conhecimento jurídico alcança, um bilhete como esse não tem força de lei ou testamento, então minha mãe, como única herdeira poderia ter simplesmente embolsado sozinha os 180 mil da venda do pequeno apartamento onde minha avó morou durante anos no bairro do Limão. mas minha mãe cumpriu a vontade da minha avó e, além de cremar seu corpo ao invés de enterrá-lo, dividiu a herança em três partes iguais.
ficou fácil de fazer a conta e você já deve ter chegado à conclusão que a primeira (e única, até agora) herança que eu recebi na vida me rendeu 60 mil reais. a maior parte desse dinheiro eu guardei, mas um valor considerável eu usei para fazer minha primeira (e única, até agora) viagem à Europa. foi um sonho realizado muito antes do que imaginei que realizaria, porque comer e beber em euro tava fora do meu alcance na época.
muitas vezes repeti para pessoas próximas que eu achava que minha avó ficaria feliz por eu ter gasto parte do dinheiro dela com uma viagem como essa, já que ela mesma adorava viajar - sempre pegava daquelas excursões da terceira idade para poços de caldas ou águas de são pedro. eu falava isso era pra mim mesma, para me convencer de que tudo bem gastar rios de dinheiro em uma viagem em euro, colocando minha avó como justificativa.
acho que é meio comum que a gente pense no que gostaria que fizessem com a gente e com nossos pertences (mesmo que eles sejam só alguns livros ou tênis velhos) quando morrermos. talvez seja uma mania nossa de controle. um medo de fazerem com a gente algo que não tem nada a ver com nossa personalidade, nossos gostos e preferências. eu tenho pavor de pensar em fazerem um velório pra mim, especialmente com cruzes e coroas de flores. no que depender de mim, não contem com a minha presença neste evento.
em 2021 eu pude presenciar um raro caso em que os desejos da pessoa em relação ao seu próprio velório foram realmente realizados pela família. no início de novembro, tivemos que lidar com a perda do meu sogro. ele sempre falou que em seu velório gostaria que rolasse whisky e as músicas que ele gostava (no geral, mpb, mas também não poderia faltar Sunshine On My Shoulders). e foi assim que eu, que nem gosto de whisky, estava embriagada com a bebida às 11h da manhã de um sábado no penúltimo mês de um dos anos mais difíceis das nossas vidas.
no episódio “pãozinho do lagostim”, da sexta temporada da série Queer Eye, os “fab five” estão no interior do Texas para dar um jeito no visual e na vida de um senhor chamado Todd Maddox. ele é dono de um restaurante de lagostim e afins, junto com a filha. a esposa (e amor da vida dele) faleceu há dez anos e, antes de morrer, pediu tanto para ele, quanto para a filha, que não fechassem o restaurante. por ter sido um grande sonho dela ter esse estabelecimento, Todd manteve o restaurante intacto, como se isso fosse mantê-la viva, de alguma forma. da mesma forma, ele se manteve igual: não cortou mais o cabelo ou a barba, não se importava com as roupas que usava. um clássico personagem desse tipo de programa de “transformação total”.
o que me pegou nesse episódio foi pensar no peso que esses últimos pedidos feitos antes da morte podem ter para quem fica. uma coisa é a gente falar como quer nosso velório, o que querem que façam com nosso corpo ou que música tocar na despedida final. outra é deixar uma missão, um pedido que impacta a maneira como as pessoas vão continuar vivendo suas vidas. se forem pessoas que nos amam, mesmo que decidam não seguir nosso pedido, podem ficar para sempre com esse peso, essa sensação de estarem nos devendo alguma coisa. talvez pedidos como esses sejam a máxima expressão de controle que podemos ter. deixar alguém incumbido de algo por nós para o resto da vida. algo que é importante para nós, não necessariamente para os outros.
se no momento da minha morte eu souber que estou morrendo, vou tentar lembrar de dizer aos que eu amo: vive uma vida feliz, faz tuas escolhas, lembra de mim como uma lembrança boa. só isso. ah e não me coloquem num velório com cruzes e coroas de flores, por favor.
até breve,
carol
Maravilhoso texto.
Amei ,Carol! Penso em um velório com música, mais vida do que morte.