oi… tem alguém aí?
preciso te falar sobre Virginia. eu sei, você deve ter pensado da Virginia Woolf. eu amo literatura, acho “um teto todo seu” um livro incrível. mas sobre essa Virginia qualquer um pode te falar. sobre a Virginia que quero te falar, do jeito que vou te contar, só eu posso.
Virginia é minha bisavó. nasceu em 1914 em Portugal, veio para o Brasil em um navio, já casada e com duas filhas pequenas. ela mesma não devia ter muito mais de vinte anos quando chegou por aqui. foi primeiro para Minas Gerais, onde teve mais uma filha. e foi só quando chegou em São Paulo, cidade na qual ficaria para o resto da vida, que teve as outras três. gerou, ao todo, seis filhas: Salete, Isaura, Paixão, Emília, Teresa e Lourdes.
se te parece estranho que nesse segundo parágrafo eu não tenha falado sobre o meu bisavô, é porque não tem mesmo muito o que se dizer. saiu de casa um dia e nunca mais voltou. quer dizer, ainda voltou uma vez, mas aí sim, um dia foi e nunca mais voltou. e foi a partir de então que a Virginia passou a ser conhecida como a mulher que criou as seis filhas sozinha. ouvi tanto essa frase ao longo da minha vida, dita por diferentes bocas, em diferentes momentos, mas sempre com admiração. foi se desenhando para mim a figura mulher mãe que cuida, sustenta, alimenta, exaltada pela mesma sociedade que cria o homem que a abandona.
talvez você esteja imaginando minha bisavó Virginia como uma mulher grande, fisicamente forte, semblante sisudo e até meio amargurada pela vida. mas olha dona Virginia como surpreende: pois de tão miúda, todos os bisnetos passaram a altura da bisa ao completar onze anos. das fotos que vi e dos anos que passei com ela, sempre esteve com o cabelo liso cortado rente à nuca, penteado para um dos lados. calçando chinelos destes bons para usar com meias, usava vestidos com cortes retos, sem detalhes ou firulas, normalmente com estampas abstratas — sempre que entro em um brechó, encontro um vestido que poderia perfeitamente ter sido da vó Virginia.
sua pele era macia, mas a maciez da velhice, da flacidez do tempo. porque pra mim, minha avó Virginia sempre foi a pessoa mais velha que eu convivi. tinha manchas, porque Virginia trabalhou por um bom tempo na lavoura, debaixo do sol quente. chegou a ter câncer de pele, e viveu por muitos anos assim.
viveu também muitos anos, todos eles, na verdade, falando português com um forte sotaque de Portugal. pois imagine você que ela chegou ao Brasil com vinte e poucos e foi-se embora deste mundo com pouco mais de noventa e por todo esse tempo falou “trabesseiro” ou “bassoura”. até hoje, mais de quinze anos após a sua morte, brinco com a minha mãe e minha irmã com uma de suas frases mais características: “voi labar uma loicinha”.
não queria te falar nada, mas cheguei aqui neste parágrafo um pouco mais sentimental. é que eu lembrei do cheiro da casa dela. uma casa térrea que começava no jardim (seu orgulho, passatempo e paixão), com suas arrudas, bromélias, capuchinhas, damas-da-noite, endros e todo o alfabeto possível das plantas que se pode ter em casa.
mas eu estava falando dos aromas. a casa da vó Virginia, para mim, tinha dois cheiros: o de chá de erva cidreira e o de queijo branco fresco. o chá era feito com a erva do jardim e até hoje não vejo graça no chá de cidreira de saquinho. como alguém que bebeu chá de cidreira plantada e colhida pela vó Virginia pode gostar de um chá que vem numa caixinha de papelão? o queijo branco eu não sei o que que é, não sei se tinha muito, se marcou de algum dia. só sei que esse cheiro pertence àquela casa também.
meu espaço aqui está acabando, eu sei, mas queria te contar mais uma coisa ou outra sobre ela. posso?
quando eu fiz 17 anos, enfim convenci meus pais de me deixarem colocar um piercing na sobrancelha. quando cheguei na casa da vó Virginia para o café da tarde da família, alguma mexeriqueira de segundo grau soltou: “vó, você viu que a Carol colocou um piercing?”. Virginia tinha visto e posto reparo, mas, em tom de sussurro respondeu: “olha, eu criei seis filhas sozinha, passei por muita coisa. acho que cada um faz o que quer da vida”.
essa história de falar bem baixinho, sussurrando, é outra mania dela que ainda rende aqui em casa. ela fazia isso sempre que queria comentar algo sobre alguém, fazer uma fofoca, como se a pessoa objeto da fofoca estivesse logo ali atrás da porta, ou pudesse entrar a qualquer momento.
em 2005, Virginia passou alguns dias internada em uma UTI, seu corpinho deixando de funcionar lentamente. se despediu de cada filha, cada genro, cada neta, neto, bisneta, bisneto. foi enterrada em um dos cemitérios mais conhecidos de São Paulo, colocada em uma cova bem perto de uma das avenidas mais movimentadas da cidade. em cima da sepultura, um imenso ipê amarelo a guardou.
você pode achar que, depois de falar de sua morte, esse texto vai acabar. mas, antes, eu tenho que te confessar, agora já no final da nossa conversa: o nome da minha bisavó, de registro, é Verginia de Jesus. pois é, com ‘e’ mesmo. escrevi errado o tempo inteiro, porque me pareceu mais acertado. mas não se preocupe não, todo o resto que foi dito sobre a vovó Virginia, te prometo, é a mais pura verdade.
até a próxima,
Carol
ps: esse texto não é inédito. foi escrito em 2021, durante uma oficina da Tayná. depois ele fez parte da publicação 8M2021, da Pri Barbosa. recomendo baixar a publicação e ver a foto da Virginia que está lá. coisa rica. resolvi “requentar” esse texto hoje, porque 19 de março seria o aniversário da personagem principal. minha eterna vó Viriginia.
Que jeito bonito de lembrar alguém! Sua bisa Virgínia bem podia ter sido amiga da minha bisa Dozolina, que veio de barco da Itália ainda menina, criou seis filhos, misturava as línguas e também achava que cada um sabia o que fazia da propria vida. Se foi com mais de 90 e tantos e ainda vive dentro da gente.
Seu texto me trouxe muitas memórias boas ♡
escreveu este texto ao longo da oficina que fez comigo e trouxe pra cá no dia do meu aniversário (data que tenho a honra de dividir com sua vovó, tão especial). que presente, minha amiga, que presente! adoro muito você.