oi... tem alguém aí?
em abril de 2018, eu mudei de emprego. fui trabalhar em uma empresa bem grande, que ficava no prédio que, anos atrás, era conhecido pelos paulistanos como “o prédio da Abril”. mais ou menos um mês depois de ter ido pra lá, comecei a sentir meus seios doloridos quando eu andava e muitos enjoos ao longo do dia. estava grávida.
não contei para o meu chefe, nem para os colegas de trabalho. disfarcei o quanto pude. tentei disfarçar até mesmo no dia em que desci do ônibus, no terminal que fica ao lado do prédio, com uma náusea pesada depois de passar quase uma hora no trânsito logo cedo. passei pelo primeiro portão e tive que correr com as mãos da boca. coloquei o café da manhã pra fora no jardim bem cuidado do prédio, entre arbustos e flores começando a abrir. situação, no mínimo, embaraçosa. não tive coragem de olhar para os lados para ver se alguém tinha reparado no que tinha acontecido.
quando completei doze semanas de gravidez e fiz o ultrassom que nos alivia de que o feto está bem, crescendo para virar um bebê, contei para todo mundo. a barriguinha já começava a apontar.
a partir daí, meus colegas de trabalho começaram a notar como eu estava diferente, mais animada, com mais energia. e era verdade, era assim que eu me sentia. mas eu tive que avisa-los que aquela era a “verdadeira Carol”, não aquela de dias atrás. eu sou uma pessoa animada, bem humorada, espontânea. a Carol que eles tinham conhecido até ali era a versão “Carol formando uma pessoa dentro de si”.
para quem nunca engravidou, explico: nos primeiros três meses, o embrião vai multiplicando suas células, se transformando, crescendo e forma toda a base do que vai ser o feto. já é nesse período que vão sendo formados o cérebro, o coração, o nariz, as unhas. tudo em versão micro, mas estão ali. pois então imagine se sobra alguma energia para uma pessoa fazer qualquer coisa ao mesmo tempo em que cria (do zero!) um cérebro e vinte micro unhas?!
nesse primeiro trimestre eu era 10% do que eu sou. não estava totalmente produtiva no trabalho, mas precisava entregar, porque era um emprego novo. quando eu chegava em casa, me largava no sofá e assistia séries repetidas, porque eu não tinha capacidade mental, emocional e física nem para assistir algo novo. foi assim que cada partezinha maravilhosa da Catarina foi feita.
eu me lembrei dessa história essa semana ao ouvir uma entrevista da Clarice Lispector, feita em 1976, que foi restaurada e divulgada recentemente. dá para ouvir a entrevista completa em dois episódios do podcast da Revista 451, o 451 MHz. já aviso que está imperdível.
no final da primeira parte da entrevista, em uma conversa do Paulo Werneck com Mariana Delfini e Benjamin Moser, este último comenta sobre o impacto de ter ouvido esta entrevista e a compara com a outra entrevista com a autora que conhecíamos, a famosa em que ela está sentada em um sofá, no programa Panorama, da TV Cultura. ele comenta que essa entrevista incomoda quem conheceu a Clarice pessoalmente, inclusive a irmã dela, Tânia. isso porque essa entrevista deixou a Clarice marcada no ideário de todos com uma imagem mais abatida, talvez até meio mau humorada. e que não revelava, de fato, quem ela era.
a entrevista da TV Cultura aconteceu poucos meses antes da Clarice falecer, e a irmã diz que a autora já não estava bem, estava cansada e doente. segundo Benjamin Moser (grande estudioso de Clarice e autor de sua biografia), faltava o público ter essa imagem, de uma “vitalidade feroz” que era característica da autora de Perto do coração selvagem, Laços de Família e tantos outros livros magníficos.
Clarice viveu em uma época na qual os registros audiovisuais não eram abundantes (e exagerados) como hoje. tivemos que esperar esses anos todos para conseguir conhecer “outra Clarice”, outro registro que pudesse trazer outras nuances de sua personalidade, a risada, o tom de conversa, a animação. no meu caso, com meus colegas de trabalho, não precisei de vídeos ou entrevistas. puderam conviver comigo nos seis meses seguintes para entender um pouco mais de quem eu era. entrar em contato com a minha vitalidade - não sei se tão feroz quanto a de Clarice, mas também um pouco intensa.
uma foto, um vídeo, um texto, um dia ou mês de convivência com alguém não é capaz de captar a essência de uma pessoa. como li certa vez e não saiu da minha cabeça: “gente não é linear”.
até a próxima,
Carol
Adorei seu texto! E é sempre importante lembrar que nós não somos máquinas: não somos todos os dias 100% iguais ao dia anterior nem temos uma linearidade de emoções, sentimentos e humor!
Nem a gente mesmo conhece toda nossa essência não? Cada fase, novas descobertas (e que bom isso).